quinta-feira, 22 de abril de 2010 | By: Unknown

Por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira...

"Era uma aldeia de pescadores de onde a alegria fugira, e os dias e as noites se sucediam numa monotonia sem fim, das mesmas coisas que aconteciam, das mesmas coisas que se diziam, dos mesmos gestos que se faziam, e os olhares eram tristes, baços peixes que já nada procuravam, por saberem inútil procurar qualquer coisa, os rostos vazios de sorrisos e de surpresas, a morte prematura morando no enfado, só as
intermináveis rotinas do dia a dia, prisão daqueles que se haviam condenado a si
mesmos, sem esperanças, nenhuma outra praia prá onde navegar...

Até que o mar, quebrando um mundo, anunciou de longe que trazia nas suas ondas coisa nova, desconhecida, forma disforme que flutuava, e todos vieram à praia, na espera... E ali ficaram, até que o mar, sem se apressar, trouxe a coisa e a depositou na praia, surpresa triste, um homem morto...

E o que é que se pode fazer com um morto, se não enterrá-lo? Tomaram-no então para os preparativos de funeral, que naquela aldeia ficavam a cargo das mulheres; às
vezes é mais grato preparar os mortos para a sepultura que acompanhar os vivos
na morte em que se perderam ao viver. Foi levado para uma casa, os homens de
fora, olhando...

No corpo morto as algas, os líquens, as coisas verdes do mar, testemunhas de funduras e distancias, mistérios escondidos para sempre no silêncio de sua boca sem palavras...

As mãos começaram o trabalho, e nada se dizia, só os rostos tristes... Até que uma delas, um leve tremor no canto dos lábios, balbuciou:
– “É, se tivesse vivido entre nós teria de se ter curvado sempre para entrar em nossas casas. É muito alto...”

E todas assentiram em silêncio.

– “Fico a pensar em como teria sido a sua voz”, disse uma outra. “Teria sido como o quebrar das ondas? Como a brisa nas folhas? Será que ele conhecia a magia das palavras que, uma vez ditas, fazem uma mulher colher uma flor e a colocar nos cabelos?”

As outras mulheres sorriram, surpresas de memórias que começavam a surgir de profundezas, como bolhas que sobem de espaços submarinos, desejos há muito esquecidos.

Foi então que uma outra, olhando aquelas mãos enormes, inertes, disse as saudades
que arrepiavam a sua pele:

– “Estas mãos... que terão feito? Terão tomado no seu vazio um rosto de mulher? Terão sido ternas? Terão sabido amar?”

E elas sentiram que coisas belas e sorridentes, há muito esquecidas, passadas por mortas, nas suas funduras, saíam do ouvido e vinham, mansas, se dizer no silêncio do morto. A vida renascia na morte graciosas de um morto desconhecido e que, por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira...

E os homens, do lado de fora, perceberam que algo estranho acontecia: os rostos das mulheres, maçãs em fogo, os olhos brilhantes, os lábios úmidos, o sorriso selvagem, e
compreenderam o milagre: vida que voltava, ressurreição de mortos... E tiveram
ciúmes do afogado... Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados,
e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais
faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?),
e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram
amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?)...

Termina a estória dizendo que eles, finalmente, o enterraram.

Mas a aldeia nunca mais foi a mesma..
Não, não é à toa que conto esta estória. Foi quando eu soube da morte – ela cresceu dentro de mim.
Claro que eu já suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças, e o bronze das armas odeia canções, especialmente quando falam de flores, e não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte. Foi então que me lembrei da estória. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio, para dar nome aos meus sentimentos, e se contou de novo. Só que agora os
rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando, cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, as panelas, sinfonia que se tocava, sobre a desculpa de um morto...
Mas não era isto, não era o morto: era o desejo que jorrava, vida, mar que saía de funduras reprimidas e se espraiava como onda, espumas e conchinhas, mansa e brincalhona..."

(Rubem Alves - A aldeia que nunca mais foi a mesma)


Me deparei com esse texto a pouco enquanto resolvia uma prova da uerj..
Mas eu não vou comentá-lo, se ele os fizerem refletir como fez comigo já terá valido à pena...

Então no momento é só..
Quero postar mais 3 textos hoje (sim tô com bastante coisa acumulada)..
Então até mais!
Beijinhos Galera!

Fui-me!_o/

1 comentários:

Matheus Seixas disse...

Achei!
ehhehehhehehehe
Texto mt bom.. Que a vida não seja apenas uma rotina!
Saudades!!!
Bjs!

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